A morte de Flávio Migliaccio não será em vão
Em meio a uma pandemia terrível e um país mergulhado no caos, ator, roteirista e diretor deixou a vida aos 85 anos. Seu ato precisa ser respeitado e compreendido.
Flávio Migliaccio em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha: “O povo sou eu.”
Talvez você não se lembre muito de Flávio Migliaccio no cinema. A imagem do ator certamente é mais viva por seus papéis na televisão, como acontece com a maioria dos colegas de sua geração. Mas Flávio teve sim uma carreira cinematográfica notável. Em 1962, ele participou de “Cinco Vezes Favela”, como ator e roteirista, e no ano seguinte estreou como diretor em “Os Mendigos”, chamado de “a primeira comédia do Cinema Novo”. Migliaccio atuou ainda em “O Grande Momento”, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, “O Homem Nu” (os três, de Roberto Santos), “Todas as Mulheres do Mundo”, “Terra em Transe”, “Os Machões”, “A Noiva da Cidade”, “Boleiros” 1 & 2, entre outros. Seu último filme foi “Jovens Polacas”, que ainda estava em cartaz em algumas salas, antes do fechamento dos cinemas em decorrência da pandemia de coronavírus. Como diretor e roteirista, ele também realizou “Os Caras de Pau”, “Assalto à Brasileira”, a trilogia do Tio Maneco (“As Aventuras com Tio Maneco”, “O Caçador de Fantasmas” e “Maneco, o Super Tio”) e, por fim, “Os Trapalhões na Terra dos Monstros”. Deste último, coincidentemente, revi algumas cenas, zapeando pelo Canal Brasil, na véspera da morte de Flávio, em 4 de maio. Ele estava com 85 anos.
Flávio não morreu por COVID-19. Flávio tirou a própria vida. E a morte de Flávio não pode passar em vão. Não pode. Ainda mais agora, neste momento mais do que trágico que vivemos, em que números impressionam, mas ao mesmo tempo anestesiam o luto digno que todas as vítimas da doença merecem. Ainda mais agora, quando o governo do país mata, dia após dia, a nossa arte e a nossa cultura. Se esse governo não é digno nem mesmo de emitir uma nota de pesar por tantas perdas notáveis das últimas semanas, ele silenciosamente assume a culpa.
Flávio Migliaccio precisa ser notado e lembrado. “Gosto de fazer as pessoas rirem: o ser humano procura a felicidade. Num Brasil tão estraçalhado, responder pelo alívio do sofrimento é uma dádiva”, disse ao ser homenageado no Festival de Gramado, há seis anos. Ele, que olhou pelas crianças e representou os periféricos nas telas, deixou a vida em um ato de extrema coragem, nas palavras do filho, Marcelo, que revelou que o pai vinha sofrendo de problemas de visão e audição, não bastasse suportar todo o caos que a realidade do país já impõe. “[Ele] me fez ver que a maior prova de amor que se pode dar a uma pessoa é respeitar suas convicções, suas decisões, seu jeito de ser e de não ser.”
Ato de coragem, também nas palavras do colega Lima Duarte, que produziu o que provavelmente é o registro audiovisual mais importante de um artista brasileiro até aqui neste terrível ano de 2020. "Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, agora, 56 anos depois, quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve", desabafa o ator no vídeo de despedida póstuma. Ele arremata, parafraseando Brecht: "Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue!" E sai de quadro. A câmera, porém, continua a filmar a parede, repleta de cartazes de filmes brasileiros (cartazes, não nos esqueçamos, retirados das paredes da Ancine). O vídeo termina após alguns segundos duramente silenciosos. Silêncio, agora nosso, diante da perplexidade que consome os dias.
Em tempo: a Revista de Cinema noticia que um documentário sobre Flávio Migliaccio está em desenvolvimento. O título: “Um Brasileiro em Cena”.
“Bacurau” é líder de bilheteria nos Estados Unidos. Pelo menos, de bilheteria virtual. A distribuidora Kino Lorber divulgou os números das vendas de “ingressos” dos filmes que ela está exibindo na plataforma criada poucas semanas após o início da pandemia. A Kino Marquee tenta emular a experiência de ir ao cinema, disponibilizando títulos exclusivos que não estão nas demais plataformas de streaming. Em cinco semanas, de 19 de março a 30 de abril, “Bacurau” arrecadou lá mais de 100 mil dólares em sessões digitais. Somando esse valor às vendas que o filme obteve nas salas físicas nos EUA, onde foi lançado em 6 de março, já são quase 160 mil dólares de renda. Até o momento, a Kino Lorber é a única distribuidora que divulgou dados mais precisos do VoD, comparáveis aos das bilheterias tradicionais. É preciso que as demais empresas e estúdios se comprometam a informar seus números com transparência ou tudo continuará parecendo apenas publicidade. (IndieWire)
Cá no Brasil, exibidores preveem a reabertura dos cinemas entre junho e agosto, Roger Lerina conta. A previsão é da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas. Mas tudo depende de três fatores: a autorização dos governos, a confiança do público de que é seguro frequentar as salas e, claro, quais filmes as distribuidoras irão lançar. O calendário atualmente, de acordo com o Filme B, só prevê lançamentos a partir de 9 de julho. Entre os longas agendados estão “A Assistente”, “A Jornada”, “A Maldição do Espelho” e “Uma Noite de Crime - A Fronteira”. Antes dessa data, caso as salas reabram, devem estar em cartaz os filmes que eram exibidos antes do fechamento.
Enquanto isso, o fenômeno da volta dos cinemas drive-in nos EUA também está acontecendo no Brasil. Depois de o Cine Drive-in Brasília atrair 2,6 mil pessoas no fim de semana passado, o Cinesystem Litoral Plaza Drive-in, em Praia Grande, no litoral de São Paulo, vendeu 480 ingressos de segunda a quarta. Não há lançamentos, claro. Em cartaz, filmes como "Luta por Justiça", "1917" e "PéPequeno". (FilmeB)
Lá na China, as salas convencionais já têm autorização do governo para voltarem a funcionar -- desde que sigam as diretrizes de segurança. Será preciso limitar o número de espectadores, reforçar a ventilação nas salas e implementar limpeza e desinfecção rígidas. Quanto ao público, o uso de máscara é obrigatório. (Variety)
Se os cinemas começarem o segundo semestre reabertos, junho será o último mês de lançamentos exclusivos online. E é quando teremos novos filmes de Judd Apatow, “The King of Staten Island” (trailer), programado pela Universal Pictures para 12 de junho, e de Spike Lee, “Da 5 Bloods”, que a Netflix lançará na mesma data.
Lee, que acaba de lançar no Instagram um curta que ele criou durante a pandemia. “É uma carta de amor ao povo de Nova York. Simples e direta.” Nova York é o local dos EUA mais afetado pela COVID-19, com mais de 330 mil casos e 21 mil mortes. O filme de 3 minutos e meio é composto por imagens de vários lugares de Manhattan esvaziados e algumas cenas de moradores nas janelas e profissionais de saúde. Na trilha sonora, Sinatra canta: “If I can make it there, I'll make it anywhere.”
Os estúdios lançando filmes online e a Academia dizendo que irá aceitá-los no Oscar 2021. Mas a outra Academia, a de Televisão, alerta: filmes de streaming e VoD que forem indicados ao Oscar estarão desqualificados para competir no Emmy. (IndieWire)
Já o Globo de Ouro anunciou novas regras para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro, eliminando a obrigatoriedade da exibição nos cinemas. Serão elegíveis todos os filmes lançados em 2020 em seus países de origem, seja no streaming ou até mesmo em canais de TV. (Variety)
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E agora, aquele giro pelas novidades em projetos que estão em pré-produção:
M. Night Shyamalan escalou o elenco principal de seu próximo filme, ainda sem título: Eliza Scanlen (“Adoráveis Mulheres”), Thomasin McKenzie (“Jojo Rabbit”), Aaron Pierre (série “Krypton”), Alex Wolff (“Hereditário”) e Vicky Krieps (“Trama Fantasma”) estão em negociações. O enredo do longa é mantido sob sigilo absoluto. A produção é da Universal Pictures. (Variety)
Taika Waititi está confirmado na direção do próximo filme da franquia “Star Wars”. Ele também vai escrever o roteiro ao lado de Krysty Wilson-Cairns, indicada ao Oscar por “1917”. O enredo do longa também é sigiloso. (The Hollywood Reporter)
Ainda sobre “Star Wars”, um velho conhecido dos fãs está de volta na segunda temporada de “The Mandalorian”: Boba Fett. E antes que você pergunte, “mas ele não morreu em ‘O Retorno de Jedi’?”, lembre-se de que Darth Maul também parecia estar morto em “A Ameaça Fantasma”. Quem interpretará Boba Fett na série não poderia ser outro ator: Temuera Morrison, que viveu o “pai” dele, Jango Fett, em “Ataque dos Clones”. (The Playlist)
Nicolas Cage viverá Joe Exotic em uma versão dramatizada da série “A Máfia dos Tigres”, da Netflix. O projeto, no entanto, é da CBS, que já havia comprado os direitos de um artigo que conta a história de Joe bem antes de ela virar um fenômeno midiático. Temos que concordar que o casting é perfeito. (The Hollywood Reporter)
Cate Blanchett pode protagonizar a adaptação do game “Borderlands”. Ela está em negociações para viver a personagem Lilith. Quem está na direção do projeto é Eli Roth, de “O Albergue”. O roteiro é de Craig Mazin, da minissérie “Chernobyl”. (Variety)
Sylvester Stallone anunciou que uma continuação de “O Demolidor” está a caminho. Não o filme do super-herói da Marvel, mas a aventura distópica que Sly, Wesley Snipes e Sandra Bullock estrelaram nos anos 90. Será que ele finalmente aprenderá a usar as conchas? (The Playlist)
Se é continuação e distopia que você quer, então terminamos a newsletter com esta: a Paramount comprou o roteiro de “2084”, descrito como uma “continuação espiritual” do clássico “1984”. Quem assina é o novato Mattson Tomlin, que coescreveu com Matt Reeves o roteiro do ainda inédito “The Batman”. Não foram divulgados detalhes da trama, a não ser essa comparação com o livro de George Orwell. O produtor e marketeiro de primeira Lorenzo di Bonaventura (“Transformers”) também usou como referências “A Origem” e “Matrix” para se referir ao projeto. (The Hollywood Reporter)
É isso. Até a próxima edição!
Forte abraço e cuide-se,
Renato Silveira
Editor-chefe do Cinematório